segunda-feira, março 13, 2017

E a banheira?

-É um menino! É um menino!

Meus olhos estavam pesados. Eu os abri. Flashes de luz! Reconheci alguns semblantes sorrindo pra mim, falando coisas que me soavam apenas como ecos. Era difícil manter os olhos abertos. Parecia aquelas cenas de filme quando, depois de um acidente, a vitima acorda e aos poucos a realidade vai se estabilizando aos olhos. Udhayan trouxe ele embrulhado numa mantinha verde e um chapéu de trico lhe cobria a cabeça. Eu ainda estava confusa. Era omo se eu estivesse nascendo também. Senti seu cheiro de carne fresca, como carne de açougue, fresca para o almoço de domingo.

Eu sempre tive medo de parir. Aquelas cenas de TV com mulheres deitadas na maca, suadas, estéricas, gritando desesperadamente sempre me apavoraram e me levavam a questionar se um dia eu seria capaz. Quando engravidei, estes sentimentos simplesmente desapareceram, não por que a "preparação" tivesse chegado com a noticia da gestação, mas o meu cérebro simplesmente bloqueou qualquer coisa relacionada a isto.

E como eh o sistema de saúde dai? Vai parir ai? Vai ser normal? Vai ser humanizado?
"Humanizado" e "Orgânico" são dois rótulos que bastante me intrigam. O mundo ficou tao louco que precisamos dar um adjetivo especial a processos que são absolutamente naturais, como se o natural fosse o diferente, o "especial". Quando começava a ler sobre parto humanizado, muitas vezes me deparava com textos altamente moralistas e julgadores e abandonava a leitura pelo meio. Logo nos primeiros meses de gestação ganhei de presente da minha sogra um livro maravilhoso entitulado "New active birth" (Janet Balaskas). De forma geral - ou pelo menos a essencia que absorvi dele - ele fala do quão natural eh o processo de parir e o quão importante eh que a mulher seja a parte ativa deste processo, ouvindo o seu corpo e acreditando no seu potencial. Ele da algumas dicas de posições favoráveis durante o trabalho de parto, a importância da atuação do parceiro no processo, o poder da respiração, os efeitos analgésicos da massagem, da água morna. Tudo muito leve e sem julgamento, repetindo infinitas vezes "o seu corpo ira te guiar". Enfim, este livro foi abrindo-me e ajudando-me a me despir de qualquer medo. As vezes me emocionava quando lia alguns relatos, o primeiro olho no olho, o contato pele a pele, a maneira como o corpo se adapta para expulsar o feto.

A partir da minha trigésima sexta semana de gestação, nas consultas de pre-natal já me era cobrado o plano de parto. No que eu tivesse a obrigação de faze-lo, mas era importante eu documentar as minhas "expectativas", o que era ou não permitido. A iluminação do quarto, musica, quem poderia estar presentes, quais procedimentos eu permitia serem usados - como a checagem da dilatação, por exemplo. Quais artifícios de alivio de dor eu gostaria, massagem? gás? morfina? epidural?. Nas aulas de pre natal, eu lembro que achei um absurdo o uso da morfina ou epidural. "Não poder nem sentir quando vem a contração pra saber quando fazer forca? Que absurdo! Naã sentir as pernas, não poder levantar? Não! Não quero isso pra mim!!". O que eu não abria mão era a banheira. Alem de me soar como um excelente artificio natural de alivio da dor, ainda tinha todo o beneficio para o bebe.

Os meus exames de sangue estavam mostrando taxas baixas de ferro e de plaquetas. A deficiência de ferro poderia ser facilmente corrigida com um suplemento, mas quanto as plaquetas, não havia muito o que fazer. Por isso, meu plano inicial de ter um parto caseiro estava descartado. Na verdade, eu ainda tinha esta opção, mas fui alertada da possibilidade de uma hemorragia e a necessidade de uma resposta rápida.

(Eu to escrevendo aqui e morrendo de vontade de relatar a qualidade do sistema de saúde publica daqui da Escócia. Como receber uma ligação do posto de saúde para discutir o resultado do meu exame de sangue ou urina, de receber a medicação necessária de graça, da possibilidade de ter um parto caseiro com todo o acompanhamento necessário e tantas outras coisas que nem um sistema privado de saúde no Brasil dispõe)

A noite de domingo (09/10)  tinha sido péssima! Eu já estava sentindo cólicas bem fracas ha uns dias, mas naquela noite as dores aumentaram e era difícil achar uma posição pra dormir. Pela manha fomos nos registrar no novo posto de saúde e eu ainda me queixava das dores. Udhayan cogitou não ir trabalhar, mas eu pedi pra ele relaxar, pois caso fosse mesmo o inicio do trabalho de parto, o que todos diziam eh que dura em torno de 12 horas. Eu teria tempo de avisa-lo. Nesta manhã eu caminhei, fui as compras, ainda com dores, que iam e vinham. Ao chegar em casa fui fazer uma sopa. "Deixa eu garantir o jantar", pensei. Acho que neste momento que comecei a me dar conta de que tratava-se realmente de contrações. Elas vinham bem espaçadas e duravam alguns minutos, a ponto de eu ter que parar o que estava fazendo para respirar, e assim o ciclo ia se repetindo.

Depois de preparar a sopa fui tirar um cochilo pra repor a péssima noite que havia tido. Ao acordar percebi uma secreção com uma cor meio ferrugem. Liguei para o centro de triagem e eles me disseram que era um sinal, mas que o parto não necessariamente iria acontecer naquele dia. Eram cerca de 14:00, liguei pra Udhayan toda animada e ao mesmo tempo tranquila. As dores haviam aumentado, mas eu estava habituada a fortes cólicas menstruais. Eu ate dançava e brincava "Vou tirar de letra isso aqui, parir nao eh tao mal assim".

O intervalo entre as contrações foi diminuindo e as dores ficando mais intensas. Por volta das 18:00 da segunda (10/10) ligamos para o hospital, mas fomos orientados a permanecer em casa, ate que elas se estabilizassem com intervalo de 3 min e duração de pelo menos 1 minuto. Consegui jantar, tomei um banho quente para aliviar as dores. Udhayan massageava a minha lombar a cada contração. A posição mais fácil que encontrei foi sentada na bola de pilates com o peito apoiado no piano, e aquela sensação de "ate que não eh tao mal assim" já estava se esvaindo. Por volta da meio noite fomos ao centro de triagem. Uma jornada desconfortavel, uma espera chata numa recepcao clara e fria. Coletei urina, tive batimentos cardiacos e pressao arterial checados e o exame vaginal indicou apenas 2 cm de dilatacao. A midwife fez o procedimento de descolamento de membrana, me deu um analgesico a base de morfina e me mandou de volta pra casa, aconselhando-me a dormir um pouco, me alimentar bem e continuar ativa.

Dormir era algo impossivel naquela situacao. As contracoes nao paravam. E nao se estbilizavam, o intervalo entre elas horas eram de 3 minutos, horas de 7. Consegui relaxar um pouco fazendo uns exercicios de respiracao, mas tudo bem longe de ser um cochilo. Pedi para Udhayan tentar dormir um pouco, para nao ficarmos os 2 esgotados. Sei que precisaria dele em breve. Durante a gestacao eu praticava muito a posicao de cocoras, e achei que esta seria um posicao que usaria durante o trabalho de parto, por ser naturalmente confortavel para mim. Mas quando estava la, ficar acocorada era extremamente desconfortavel, eu nao conseguia permanecer assim nem por um minuto. Tentei deitar um pouco, mas esta era de longe a posicao mais desfavoravel. Permaneci de certa forma "ativa", caminhando pela casa nos intervalos das contracoes, horas sozinha, horas apoiada por Udhayan. Coloquei uma cadeira embaixo do chuveiro e tomei banhos quentes algumas vezes.

Ja se passara mais de 24 horas e eu estava mentalmente e fisicamente esgotada, depois de 2 noites sem dormir. Um apliativo me ajudou a monitorar as contracoes. As vezes elas duravam 2 minutos, com intervalo de 3 min entre elas. Era um sinal de que estava progredindo bem, mas ai de repente os intervalos ficavam maiores e assim ia oscilando. Meu corpo ja nao estava respondendo mais. Eu so qeria ficar parada, ou simplesmente sumir. Liguei pro centro de triagem outra vez, ja era cerca de 18:00 da terca feira (11/10)

-Pelo amor de Deus, me de alguma coisa para aliviar a dor!!!
-Eu gostaria de poder te ajudar, mas voce esta indo bem, esta quase la. Continue cooperando.
A orientacao era so se dirigir ao hospital caso as contracoes se estabilizasse por pelo menos 1 hora.

Eu ja estava perdendo a sanidade depois de quase 30 horas de trabalho de parto. Em um dos banhos eu chorava desesperadamente como uma forma de catarse. "Nao quero mais!" "Fure logo minha barriga e tire esta crianca daqui!!!"

Por volta da meia noite, 24 horas depois da primeira ida ao centro de triagem, ligamos novamente para o hospital. Udhayan insistiu para que eu fosse encaminhada direto para o centro de parto, com medo de que a longa espera, a claridade e o frio interrompessem o quadro de contracoes que ja estava se estabilizando. Depois de muito insistirmos, fomos encaminhados para la. Novamente tive pressao arterial e batimentos cardiacos checados pela midwife, os batimentos cardiacos do bebe estavam em torno de 170bpm. Recebemos a visita da cardiologista que atribuiu esse quadro ao stress do trabalho de parto ou a uma desidratacao. A midwife realizou novamente o procedimento de descolamento de membrana e o exame vaginal indicou uma dilatacao de...2cm. 2 cm???? 2 cm!!! Nao acreditei que depois de 24 horas de contracoes apos o primeiro exame eu nao havia dilatado absolutamente nada!

-Por favor, nao me mande de volta pra casa!! - Cai em prantos lembrando das ultimas 24 horas e imaginando ter que passar por isso novamente, sabe-se la por quanto tempo mais.
-Nao se preocupe, nao vamos te mandar pra casa nesta situacao.

Acho que a maior preocupacao eram os batimentos cardiacos dele, ja que parir na verdade doi mesmo. E pode doer por horas, dias, semanas...

-Voce tem algum plano? - Ela me perguntou
-Eu quero muito tentar a banheira
-Voce esta muito cansada e fraca. E o seu processo nao esta nem no inicio ainda. Nao acredito que a banheira ira te ajudar muito nesta situacao. Quando voce chegar no estagio de precisar fazer forca, pode ser que nao tenha energia para tal. Eu sugiro que voce tome uma epidural, durma um pouco e descanse ate que as contracoes e dilatacao evoluam.

Eu ja estava aberta a quaquer artificio que me ajudasse a aliviar a dor e me permitisse algumas horas de sono. Fui transferida do centro de parto para o hospital, que ficava no andar de cima. A esta altura, eu ja perdera a nocao de tempo. So me lembro que demorou muito ate eu tomar a anestesia. Coletaram algumas amostras de sangue, recebi a visita da anestesista para me explicar como seria o procedimento. As contracoes nao paravam, e nem o "gas and air" me ajudava a a aliviar a dor. Eu dava milhoes de baforadas, incessantemente. Colocaram um monitor cardíaco, um monitor para as contracoes e um acesso na minha mao. Os batimentos cardíacos dele normalizaram, mas a espera para tomar a anestesia parecia interminável.

Quando me aplicaram a anestesia, o alivio foi imediato, mesmo elas tendo me explicado que demoraria alguns minutos para eu perceber o efeito. A enfermeira e Udhayan disseram que ate o meu semblante mudou.

Tive a minha bolsa rompida pela midwife, isso aceleraria o processo de dilatacão. Minutos depois os batimentos cardíacos dele baixaram abruptamente. Ela me virava de um lado para o outro diversas vezes, segundo ela, ele poderia estar sentado ou segurando o cordão umbilical. Depois de virar pra la e pra cá, os batimentos dele normalizaram. Algumas horas apos o rompimento da bolsa, o novo exame vaginal indicou uma dilatação de 3 cm. Aquela informação me causava frustração e certo desespero. Quanto tempo isso vai durar? Pelo menos eu não estava sentindo mais dor. Decidiram me aplicar ocitocina, para induzir o parto.

Mesmo anestesiada da cintura para baixo, eu sentia uma secreção vaginal e avisei as midwifes, mas elas me acalmavam dizendo que era normal.

-Esta frio aqui? Estou sentindo muito frio! - Coloquei um casaco
(...)
-Ta muito frio aqui! Me de um cobertor por favor!
Udhayan colocou todas a roupas disponíveis sobre mim e o frio não passava. Eu tremia, batia queixo. Os calafrios vieram acompanhados de uma febre... Batata! INFECÇÃO!

Eu escutava os monitores alarmando. Uma medica entrou na sala. Verificou que havia meconio no meio das secreções vaginais. Meus batimentos cardíacos estavam elevados. Os batimentos cardíacos dele estavam em 220bpm. A partir dai vi uma bateria de médicos entrando e saindo da sala. Mais amostras de sangue, mais medicação injetada no acesso que eu ja tinha.

-Oi, meu nome eh fulana, sou medica. Vamos precisar partir para uma cesária de emergência. bla, bla, bla, bla...nao se preocupe, nos lidamos com isso todos os dias...
-Oi, meu nome eh ciclana, sou anestesista. Vamos usar o acesso que você já tem para epidural para aplicar a anestesia para a cesaria. Basicamente vamos aumentar a dose e vai ser tranquilo...
-Oi, meu nome eh Beltrano, sou enfermeiro...
-Oi, eu sou X, sou cardiologista...

Meu Deus! Eh grave! Acho que neste momento me dei conta de que não se tratava apenas de dor e frio. Estávamos correndo risco. Nos dois! Eu acho que em menos de 10 minutos depois da febre e calafrios, eu já estava na sala de cirurgia. Udhayan iria acompanhar tudo. Aumentaram a dose da anestesia, mas eu conseguia ainda mexer as pernas. Mais uma dose e as pernas ainda se podiam mexer. Aumentaram mais ainda, mas eu sentia a temperatura fria do spray de teste.

-Eh, nao temos tempo. Vamos ter que aplicar anestesia geral

Colocaram uma mascara de gas na minha face:
-Respire fundo!Isso, mais, mais!

Numa fracao de segundo, olhei para Udhayan e seus olhos estavam vermelhos e umidos. Ele me deu um beijo. Aquele beijo tinha o potencial de ser o ultimo, talvez? Sei la, apaguei...

-É  um menino! É um menino!
Meus olhos estavam pesados. Eu os abri. Flashes de luz! Reconheci alguns semblantes sorrindo pra mim, falando coisas que me soavam apenas como ecos. Era dificil manter os olhos abertos. Parecia aquelas cenas de filme quando depois de um acidente a vitima acorda e aos poucos a realidade vai se estabilizando aos olhos. Udhayan trouxe ele embrulhado numa mantinha verde e um chapeu de trico lhe coria a cabeça. Eu ainda estava confusa, mas senti seu cheiro de carne fresca, como carne de acougue, fresca para o almoco de domingo.



“Eu tentei, mas não consegui”. Já ouvi algumas mulheres proferindo esta frase, muitas vezes em tom de frustração, na tentativa de justificar um fracasso por não terem conseguido ter um parto natural, como se isso fizesse uma mulher ser menos mulher, menos forte, menos capaz. Eu mesma já me peguei varias vezes respondendo pras pessoas “depois de 40 horas de trabalho de parto, tive que partir pra uma cesária de emergência”

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Não sabíamos qual seria o sexo do bebe, queríamos a emoção da surpresa, Mas a primeira vez que o vi eu estava tao dopada por conta da anestesia geral, que perdi a tal magia do momento. Luca nasceu no dia 12/10, as 10:54, com 4kg 350gramas e 56 cm. Seja la o que tenha acontecido para eu "não dilatar", sou muito grata por estarmos os dois vivos e perfeitamente saudáveis.
Udhayan não pode permanecer na sala de cirurgia, por causa da anestesia geral. Foram 1,6L de sangue perdidos durante a cirurgia, uma taxa de hemoglobina e plaquetas que despencaram mais ainda. 4 dias em observação no hospital. Nos primeiros dias eu tinha monitor cardíaco, sonda urinaria, acesso da epidural, bombinha de massagem nas pernas para evitar trombose, acesso venoso, monitor de pressao arterial. Eu mal conseguia segurar ele nos bracos. Foram 3 dias de antibiótico injetados na veia, por conta da infeccao. No fim das contas saiu tudo diferente do que coloquei no plano de parto. Com exceção da morfina, experimentei todas os artifícios de alivio de dor e acabei caindo na faca. SÓ FALTOU A TAO DESEJADA BANHEIRA!

Parir normal eh pra quem pode, nao eh pra quem quer!!!