segunda-feira, maio 29, 2006

Deixa pra lá

Era um crioulo, um albino e um moreno de olhos azuis. Dois deles trajavam um terno escuro de linho e traziam uma maleta nas mãos. O terceiro, não menos elegante, exibia uma gravata estampada sobre uma camisa de seda e um relógio de couro marrom – Mas que tolice a minha, começar uma história pela descrição das roupas. Enxerguei três advogados, mas não era essa a intenção – A verdade é que eram três rapazes, os mesmos crioulo, albino e moreno de olhos azuis, sentados num botequim da primeira transversal com a rua principal tomando cerveja em plena segunda feira. Para ser mais clara, direi que eram três estudantes, recém ingressos na faculdade – pode ser no curso de direito, para aproveitar a idéia da primeira imagem – Mas eles calçavam tênis, um deles vestia uma camisa de um time de futebol famoso. Vejo que não é esta ainda a descrição que pretendo. Vou deixar então que a história seja apenas o crioulo, o albino e o moreno de olhos azuis...

E COMO É?

E não se envolver, como é que faz? A gente suja só a ponta dos dedos e transfere a sensação pro resto das mãos. Fecha os olhos e fica só observando o que tem lá dentro, imaginando se esse lá dentro derrepente saltasse pra fora e caísse no poço fundo daquele que tenta se esconder. Não se envolver se faz ao contrário, soluçando pra dentro, andando em silêncio, cantando sem voz. A gente vai deixando o rio correr, e quando ele estiver bem perto do mar, é só nadar contra a correnteza e voltar pra ilha de onde partiu. Não se envolver é com a ponta dos dedos, a ponta da língua, a ponta dos pés. Mas qualquer ponta de pensamento ou fagulha de sentimento que cai no coração, põe tudo a perder e a gente fica realmente sem saber como é que faz

UM DOMINGO PRODUTIVO

Estive pensando...
Pensei nos antigos amores. Naqueles que não deram certo, naqueles que porventura vingaram e em tantos outros que sequer saíram da imaginação.
Lembrei dos antigos amigos. Daqueles com os quais perdi a cumplicidade por ser tão ausente, daqueles que consegui fortalecer os laços e de tantos que nem vejo mais. Fiz projeções pra saber quais deles realmente ficarão.
Lembrei da mulher catando lixo e dos limites estreitos entre a loucura e a razão.
Pensei nas coisas que estão nascendo e mudando e no medo que elas trazem consigo.
Lembrei da antiga lavadeira da família e pensei na velhice que invade o corpo roubando a força de trabalho e a capacidade de defesa.
Lembrei da minha sobrinha, que está crescendo longe de mim.
Pensei no quanto eu sou esquisita, às vezes.
Lembrei dos meus sonhos que foram se tornando cada vez mais flexíveis. Construí diálogos, criei situações.
Até chorei!
Lembrei do meu cachorro que fugiu de casa.
De uma bicicleta rosa que tive quando criança.
Lembrei de mim, às vezes esqueço disso. Tenho necessidade de mim, mas como nunca é urgente, isso às vezes fica esquecido.
Outro dia estive pensando no que seria um domingo produtivo. Acho que esse foi um domingo deveras produtivo.
Lembrar é estranho, mas fermenta...

quinta-feira, maio 25, 2006

BESOURO SUICIDA

Ele estava andando meio trepido, tentando agarrar-se ao teto, a muito custo, eu diria. Parecia até carregar um peso nas costas, tão torto que andava. Mas, uma vez que estava pendurado ao teto, mais fácil seria pensar que estivesse ele sendo carregado pelo peso que equilibrava-se na camada de ar imediatamente abaixo da sua superfície. Desta maneira, eles estariam caminhando por um corredor infinito formado pelo teto e a camada invisível de ar. E como se estivesse adivinhando a minha tentativa de compreender a sua trajetória e aparente confinamento, ele de repente despencou do alto, ao se aproximar da luz. Não, não foi a luz do meu pensamento, era a luz da lâmpada, que também pendia do teto.

quarta-feira, maio 17, 2006


Numa madrugada dessas assim tão fria? Mas mesmo assim ele caminhava. O vento gélido lhe adormecia a face e tornava fria a temperatura das suas mãos. Ele cruzava os quarteirões numa velocidade, que dava a impressão de ele estar passando pelos carros, e não estes por ele. Não pensava em nada, pelo menos isso é o que tentava fazer. Olhava a todo instante para a sua sombra, que se movimentava num rítimo defasado do seu, dando-lhe a impressão que enfim conseguira libertar-se de si mesmo. Que enfim libertara-se da matéria sufocante que sempre lhe aprisionou. Estava diante de si, fugindo de si, ao mesmo tempo em que tentava alcançar seus passos apressados. Era uma fuga inútil. Parecia impossível libertar-se da forma indisociável que o perseguiu durante toda uma vida. E para sombra, era uma dependencia insuportável, porém necesária. Quase tropeçou no velho fético que dormia na calçada encolhido sobre si mesmo para amenizar o frio daquela noite cinza e muda. Mas em segundos recuperou o equilíbrio e a sombra numa cadência, não menos defasada, em seguida o acompanhou. Não mais suportando a perseguição, cruzou a viela de luzes de postes quebradas e cobriu-se de trevas. Teve a sua sombra projetada no silêncio, buscando o entendimento e aceitação dos seus obscuros e indissociáveis"eus" .

segunda-feira, maio 15, 2006

Saudade

Pela minha janela soprou uma saudade de colorido diferente, trazendo o perfume da presença que não está presente. Nuvens de fumaça perfumada desenharam as formas sutis de um sorriso e vi lábios úmidos rosados sorrindo pra mim. Saudade com gosto de cada centímetro dos gestos inconstantes, que mistura carinho manifesto e carinho contido. Saudade com o rítimo da melodia das palavras, com o brilho dos olhos e a quentura tênue das mãos. Saudade que me fez notar a ausência da presença. Que me fez lembrar da presença da ausência. Saudade que lançou no ar as memórias mais recentes. Saudade que alimenta a espera dos encontros reticentes...

quinta-feira, maio 11, 2006

UMA REFEIÇÃO DIFERENTE

Hoje vou mastigar o tédio. Trinta e duas pacientes vezes, como recomendam os especialistas. Quero testar a minha capacidade de digeri-lo. Uma vez comi a felicidade. Tinha um gosto azul de rosas amarelo avermelhadas, que demorou uns dias pra sair. Acho que vai ser hoje mesmo. É um dia perfeito! Terei a chuva como sobremesa e o canto do rouxinol. Nem sei se rouxinóis cantam na chuva, tampouco se o seu canto combina com o tédio chuvoso triturado e engolido. Estava pensando no acompanhamento: Tédio adora vinhos. Talvez seja o vinho que adora o tédio. Mas não! Seria um risco! Prefiro sentir cada centímetro do deglutir na mais perfeita lucidez. Aliás, a embriaguez é uma forma de fugir do seu sabor.

quarta-feira, maio 10, 2006

Liberdade Cristalina




Derramei uma gota d'água e ela não despencou, ficou suspensa no ar. Linda e imóvel, dando a impressão de que o tempo parara naquele exato momento. Tranportei-me para dentro daquela gota insólita flutuando numa atmosfera cheia de cor. Aos poucos o arco íris foi se formando ao redor. As flores foram dançando a música suave que fluia da emoção de estar presa dentro de uma massa cristalina estática e poderosa, capaz de livrar-se do inevitável fado que toda matéria possui de declinar. Eu vi o mundo através de uma gota d'agua! E experimentei a sensação de flutuar naquela massa de gases quase azuis. Mesmo confinada, foi a liberdade fluida e transparente que experimentei.

domingo, maio 07, 2006

Estranha despedida


Aquele era um abraço de despedida e ela nem percebeu. Os dois foram se abraçando naquele segundo que representava talvez o ultimo adeus. E foram se amando, se envolvendo, se gostando... A moça do sapato lilás olhava nos olhos dele e falava coisas em silêncio sem a intenção de se fazer entender. Com seus olhos úmidos dizia: Não pretendo mais você - Era uma mentira que contava a si mesma, tentando expulsar de si aquele desejo do que não se pode pretender. E ele enchia o ar com palavras, à medida que os silêncios da moça penetravam no silêncio posterior aos ecos da sua voz. Era um adeus que era dito sem ao menos saber se era adeus que se pretendia dizer. Com magia e saudade antecipada foram se amando. Sufocando os silêncios da despedida com onomatopéias de prazer.

quinta-feira, maio 04, 2006


Preciso alimentar-me de pessoas, e não é antropofagia! Preciso, por um outro intinerário, digerir cada aspecto indigesto do ser. Alimentar-me de pessoas, não da matéria que as alimenta - Se é que posso chamar amor, raiva, felicidade ou solidão de matéria. Preciso alimentar-me de pessoas! Não mais de palavras, cores e canções. Enjoei desse sabor insípido que tantas vezes degustei por pura necessidade de salvação. Vou começar por mim. Alimentar-me do meu sossego. Do meu assombro. Da minha felicidade. Alimentar-me da minha ira, sem alimentá-la. Deixá-la aos poucos saciar-se de si mesma, até não mais caber em si, até não mais caber em mim. E neste rítimo, ir me consumindo, me experimentando, me digerindo. E vou provar das pessoas. Sim! Prová-las-ei! As suas texturas, os seus sabores singulares. Preciso deste alimento, tenho agora uma fome que me consome....